Tempo

Publicado em 11/03/2024

Por Liz de Queiroz

 

Parte 1

Os filhos estavam crescendo e já tinha mais tempo para se dedicar a seus interesses. Foram anos devotados principalmente à maternidade, e não se arrependia. Gostava de ser uma mãe presente – o que em realidade ainda era. Então, na decisão sobre o que fazer com o tempo em suas mãos, sabia que teria em conta continuar pegando e levando as crianças na escola e nas suas outras atividades. Nesses pequenos intervalos se davam grandes conexões. Nos três minutos que levavam da escola à casa, por exemplo, seus filhos lhe contavam detalhes de seu dia, o que acontecera na escola, o que os amigos lhes falaram, os elogios feitos pela professora... Curtas conversas cheias de significado, afinal é no partilhar que nutrimos nossas relações. E disso Eva sabia que não abriria mão!

Estava com vontade de reeducar sua alimentação. Não que ela fosse ruim, mas sempre há o que melhorar. E é verdade que bem poderia perder uns três ou quatro quilos. Já vinha evitando comprar chocolates e sobremesas, pois se os tivesse em casa, não resistiria – sempre teve uma loucura pelos doces! Aquele prazer momentâneo que às vezes chega a arder na garganta.... como gostava disso. “Acho que meu cérebro se refestela com a carga de dopamina daí advinda. Sou viciada em açúcar?”, questionou com um lampejo de apreensão. Mas não se deteve no pensamento, afinal aquele era um dia bom, dia de tomar decisões pensando apenas em si própria! E não há espaço para preocupações.

Também queria voltar a se exercitar com consistência. Desde que deixara a dança do ventre, após 18 anos de estudos, performances e ensinamentos, não tinha ainda achado algum exercício que não lhe desse uma certa preguiça de fazer. Tentara yoga, zumba, até academia – mesmo sabendo que não era uma gym girl... mas estava difícil.

Também já tinha tentado criar em si o hábito da meditação, sem sucesso.

Enquanto refletia sobre a situação, automaticamente pegou o celular e começou a percorrer as fotos do Instagram. Que felicidade a vida de todos! Até que um desses posts pagos lhe chamou a atenção. Era um aplicativo que lhe ajudaria a estabelecer novos hábitos! Mencionava justamente o que tinha na cabeça: alimentação, exercícios, meditação! Perfeito! Sentiu como se o Instagram tivesse lido o seu pensamento... Que espécie de inteligência artificial seria essa?

Baixou o aplicativo, que oferecia uma semana gratuita antes de ter que pagar pelo seu uso, e sentiu-se feliz. Estava tudo certo. A tecnologia lhe ajudaria a dar os primeiros passos.

Logo já tinha acionado o lembrete de tomar água assim que acordasse, de tomar um café da manhã consistente – agora consumiria pão sem glúten – e de se exercitar. Oito minutos pela manhã seriam suficientes, dizia o aplicativo. Na semana seguinte, adicionaria 10 minutos de meditação. Tudo isso antes de acordar as crianças, pra começar seu dia com chave de ouro!

No primeiro dia, ao soar do seu despertador já visualizou o lembrete da água. Tinha se preparado e a garrafinha cheia estava pousada na sua mesa de cabeceira. Deu o “check” na app. “You’re doing great, Eva!”, disse a mensagem no telefone.

Também já tinha comprado seu pão sem glúten, mas não queria comer ovos no café da manhã, como tinha sido a ela sugerido. Gostava de deixar ovos como carta na manga para o seu almoço ou para complementar o jantar da família. Mas tomou seu café da manhã e marcou no aplicativo. Três dias depois a mensagem dizia: “Eva, você é um sucesso. Já conseguiu adquirir novos hábitos! Parabéns!” Eva sentia-se confiante.

No dia seguinte era hora de começar os oito minutos de exercícios matinais. Colocou o  despertador para 10 minutos mais cedo que de costume. Iria tentar se alongar antes de acordar as crianças.

Quando o despertador tocou, no entanto, Eva se sentia cansada. Queria tanto dormir mais um pouco! Clicou em “soneca” e relaxou. Dez minutos depois, aí sim levantou. Já não teria mais tempo para os exercícios. Bebeu água, acordou as crianças, tomaram o café da manhã e foi deixá-las na escola. Na volta nem lembrou que ficou devendo os exercícios. Já tinha muitas mensagens e emails para responder.

No próximo dia, tudo se repetiu. E nos dias seguintes também.

Eva tinha adquirido um novo hábito: o de apertar na soneca do despertador e de não fazer os exercícios a que tinha se comprometido!

Haveria uma mensagem do aplicativo para isso?

 

Parte 2

Estava cansada da instabilidade financeira que a acompanhava há pelo menos oito anos, quando nasceu seu primeiro filho. A maternidade sempre foi um sonho e uma certeza para Eva. A ela se dedicou e continuará se dedicando, mas agora tinha tempo para mais.

Achava irônico que não tinha conseguido a tal estabilidade financeira apesar de nunca ter deixado de trabalhar. Mesmo suas licenças-maternidade foram mínimas. Uns dois meses depois do nascimento dos filhos já estava dedicando algumas horas por semana ao trabalho na editora.

E a verdade é que, mesmo com filhos pequenos, ainda fez muito pela sua carreira. A maternidade a fez mudar de profissão – estudou muito, fundou sua empresa, adquiriu novas habilidades e conhecimentos, trabalhou tanto, muitas vezes sem receber – “por trás das câmeras”, mas tinha satisfação com o que fazia – apenas não financeiramente. E sempre conseguiu manter sua flexibilidade para ser a mãe que queria.

O marido, enquanto que diretamente não lhe cobrava nada, tampouco a deixava à vontade para continuar ganhando pouco.  Eva enxergava a decepção nos olhos dele, pois ele sempre a achara tão inteligente, competente, culta – tinha certeza que ela seria um sucesso na vida profissional. Mas, 12 anos depois que se conheceram, ele ainda não tinha visto isso acontecer. Ao menos não em relação ao que é sucesso para ele – ganhar dinheiro...

Chega. Eva estava cansada! Tinha que mudar isso. Já tinha tentado com sua empresa de uma pessoa só por cinco anos – entre filhos pequenos e mudança de país, chegou muito aquém de onde pretendia.

Depois de se sentir perdida por uns bons meses, uma terapia antroposófica de autoconhecimento tinha lhe dado a resposta que buscava: era hora de se reconectar com seu passado em direitos humanos. Buscaria um emprego de meio período em alguma instituição do terceiro setor, pra começar. Depois quem sabe passaria a alguma função governamental. E talvez após isso poderia alçar voos maiores, tentando grandes organizações de direitos humanos! O plano estava traçado!

De olho no mercado de trabalho, via poucas ofertas de emprego às quais seu currículo e experiência realmente serviriam. Sabia que não era do tipo que sairia a mandar CV feito louca a tudo o que aparecesse. Não perderia seu tempo, a não ser que tivesse certeza de que sua carta de apresentação e currículo chamariam a atenção. E foi assim que terminava o ano com apenas duas tentativas.

Na primeira, foi chamada para a entrevista. Embora tenha saído do encontro com a certeza de ter ido bem, havia alguém melhor que ela, pois Eva não foi escolhida.

Na segunda, não foi chamada sequer para a entrevista, o que lamentou muito, pois estava certa de que teria se dado bem como primeiro contato da organização que apoiava mulheres em situação de vulnerabilidade. Mas lhe ofereceram um treinamento no ano vindouro para fazer turnos casuais quando a instituição eventualmente necessitar.

Já era dezembro, um mês ruim para a empresa de Eva, que precisava de períodos de estabilidade familiar para poder prestar seu serviço com eficiência. Estava dirigindo para casa quando refletia sobre esse seu ano de incertezas profissionais e certezas de por onde seguir. Deu-se conta de que precisava colocar gasolina no carro ou não conseguiria levar o filho à aula de futebol, nem a filha à aula de teatro. Parou no posto. Antes de qualquer coisa teve de telefonar para o marido: “Podes transferir dinheiro pra mim agora? Preciso colocar combustível no carro e estou zerada.”

Não encheu o tanque. Deixou troco suficiente para um café e, ao tomá-lo, sentiu um gosto amargo na boca.

***