Preconceito linguístico na sociedade brasileira

Publicado em 11/03/2024

                     Maria Tereza de Queiroz Piacentini

 

Introdução

Vou começar com um truísmo: toda gente tem o direito de falar bem e escrever bem; quer alcançar o domínio da língua dita culta, a correta, a ideal, não importa o nome que se lhe dê. O padrão de língua ideal a que as pessoas querem chegar é aquele convencionalmente utilizado nas instâncias públicas de uso da linguagem, como livros, revistas, documentos, jornais, textos científicos e publicações oficiais; em suma, é a língua que circula nos meios de comunicação, no âmbito oficial, nas esferas de pesquisa e trabalhos acadêmicos.

A essa variedade de língua que goza de prestígio social denominamos de norma culta. Convém esclarecer que para a ciência sociolinguística somente a pessoa que tiver formação universitária completa será caracterizada como falante culto (urbano).

Uma vez que os indivíduos desejam ser reconhecidos socialmente, cabe à escola propiciar-lhes os meios para tanto. E cabe ao professor destacar o valor social que é atribuído aos usos linguísticos. Mas o que acontece com quem não tem condições de frequentar a escola? Ou de completar o ensino secundário? Como vai fazer frente à tensão social usando a linguagem adequada a cada circunstância? Digo tensão porque nas posições mais elevadas da hierarquia social se amplia o grau de vigilância e de censura alheia. Ou seja, a falta de um cabedal linguístico pronto para uso nas diversas situações de interação social pode ser motivo de julgamentos depreciativos. E aí começa o preconceito linguístico, que abordaremos a seguir com mais detalhes e ilustração.

Também vamos apresentar alguns casos de sintaxe que deixaram de ser alvo de censura para o falante brasileiro mas que talvez sejam vistos como incorretos em Portugal. Há uma explicação para isso, se se considerar que toda língua transplantada é mais arcaizante que a original. Isso quer dizer que o português brasileiro conserva algumas formas utilizadas no período em que se falava o português arcaico – entre os séculos 14 e 16, justamente quando o Brasil foi descoberto.

 

O que é preconceito linguístico

O preconceito linguístico é o julgamento desfavorável que se faz em relação à maneira como a pessoa se expressa verbalmente.

O sociólogo francês Pierre Bourdieu (2001) reafirmou a existência de um valor extrínseco imputado ao discurso de acordo com o locutor, com a legitimidade que lhe é conferida em razão do capital econômico-social e cultural que detém, o qual lhe permite enfrentar com mais tranquilidade as circunstâncias formais ou oficiais que exigem uma linguagem cultivada, mais polida e monitorada.

O prestígio social do falante, também salientou Bourdieu, transfere-se ao seu discurso, tanto assim que, quando uma expressão nova se incorpora à atividade linguística dos falantes prestigiados, ela deixa de ser considerada “erro”, o que permite inferir que o erro não é absoluto, mas sim relativo ao meio ou ao grupo social de referência.

No Brasil isso resulta em que grande parte da população tenha seu linguajar desclassificado e desqualificado em diversas circunstâncias. Com pouca escolarização formal e portanto pouco acesso à escrita, essas populações menos privilegiadas tendem, por óbvio, a conservar o uso das variedades ditas estigmatizadas, não alcançando os padrões de comportamento linguístico dos cidadãos brasileiros que têm boa formação escolar e acesso a todos os espaços da cidadania.

 

Casos típicos de preconceito linguístico

Vamos ver exemplos de enunciados que podem gerar preconceito, especialmente quando o ouvinte desconhece que não há uma unidade linguística imutável, mas sim variações de uso.

Como já dito, ao ensinar e expor os alunos – através de leituras e aulas expositivas ou práticas – às formas preconizadas pela gramática ou utilizadas pela população linguisticamente culta, a escola vai mostrar ou reforçar que não são “legítimos” (legítimo no sentido de possuir força de lei por ter o reconhecimento da comunidade)  os seguintes usos:

 - singular pelo plural: “dois café, dez real, três gol”, em vez de dois cafés, dez reais, três gols

- construções verbais como:

. “a gente vamos” em vez de a gente vai

. “nós se entendemos” em vez de nós nos entendemos

. “ela tinha chego” em vez de ela tinha chegado

 

O que não é preconceito no Brasil. Arcaísmos

Seguem-se quatro casos que configuram um uso mais frouxo do português brasileiro sem contudo ser objeto de crítica ou preconceito:

     1.  Iniciar frase com os pronomes pessoais

Não há brasileiro que não fale desta forma:

. Me conta como foi o fim de semana...

. Te enganaram, com certeza!

. Nos disseram isso.

Então, se os falantes cultos, aquelas pessoas que têm acesso às regras padronizadas, incutidas no processo de escolarização, se exprimem assim, essa é a norma culta.

 

     2. Mim no lugar de eu

A gramática normativa determina o uso dos pronomes pessoais retos eu, tu, ele, nós, vós, eles como sujeito; no entanto é muito difundida no Brasil a seguinte sintaxe:

. Disse para mim ir em vez de Disse para eu ir.

 . É para mim trabalhar em vez de É para eu trabalhar.

Aqui se encontra a influência do português arcaico, conforme atestam os filólogos Ismael de Lima Coutinho (1968:67) e Augusto Epiphanio da Silva (1959:70):

. "o coraçom pode mais ca mim"  [o coração pode mais que eu]

 

     3 Ele/ela no lugar de o/a

Também a gramática normativa determina o uso dos pronomes oblíquos o, a, os, as como complemento do verbo (objeto direto). Mas no Brasil temos o emprego com naturalidade ­– na língua falada principalmente – do pronome reto da 3ª pessoa com verbo transitivo direto:

. Conheço ela há muito tempo.

. São lindas, adoro elas.

. Tive que levar o gato, pois encontrei ele machucado.

. Perdi eles de vista.

E assim se constata no português arcaico (1959:71):

. "e o senhor disse ao alcaide ... que enforcariam ele"

. “desque vi ela” [desde que]

.  “perdi ela que foy ... milhor

 

     4.  Uso da preposição em com verbos de movimento

Outro resquício do arcaísmo linguístico está nos verbos de movimento, que podiam ser seguidos da preposição em no lugar de a: “Vieram da Gália Gótica em Espanha” (1968:67).

De fato, no Brasil é frequente o uso da preposição em com os verbos chegar e ir diante de complemento de lugar: “chegou em São Paulo, chegaram no aeroporto, foram no cinema”. (Mas: chegar a uma conclusão, chegar às vias de fato, e outras expressões não relativas a lugar.)

No livro Syntaxe Histórica Portuguesa (1959:143) Epiphanio da Silva explica que nesses casos se considerava “não o movimento a que se referem aqueles verbos e locuções, mas o estado que se segue àquele movimento”.

Naturalmente continua valendo o uso formal: “chegou a São Paulo, chegaram ao aeroporto, foram ao cinema, ir à cidade”. 

Por fim, gostaria de ressaltar que acho importante conhecermos a nova realidade de usos linguísticos na sociedade brasileira para que assim possamos entender melhor o outro, o nosso interlocutor que acaso venha a falar da maneira não canônica. Vamos aceitar e respeitar as diferenças, mas sempre desejando e fazendo o possível para que todos tenham iguais oportunidades de estudar e progredir linguisticamente.

 

Referências:

BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. 4. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001.

COUTINHO, Ismael de Lima. Gramática Histórica. 6.ed. Rio de Janeiro: Livraria Acadêmica, 1968.

DIAS, Augusto Epiphanio da Silva. Syntaxe histórica portuguesa. 4. ed. Lisboa: Livraria Clássica Editora, 1959.

 

Apresentação feita no 27º Congresso Internacional de Antropologia Ibero-Americana – etnografia, cultura e patrimônio, realizado em Leiria, Portugal, nov. 2023.