Florianópolis em três tempos

Publicado em 11/03/2024

Maria Tereza de Queiroz Piacentini

 

Século 17. Adagio.

Nasci em 1673 na Ilha de Santa Catarina, quando sua póvoa principal ainda engatinhava. Criança, não tive o ensejo de me encontrar com Francisco Dias Velho, mas me lembro de meu pai contar do funesto fim que levou esse colonizador nas mãos de piratas vingativos.

Os dias corriam lentos – o que parece um contrassenso. Mas posso dizer que a vida passava devagar enquanto a gente se ocupava com alguma atividade do nascer do dia ao pôr do sol, mesmo que fosse ficar observando as árvores, as plantas, o céu de cores cambiantes, os pássaros coloridos (papagaios, tucanos, rolinhas), o riacho quase silencioso. Contemplação ativa... Nas noites quentes eu me permitia um banho no mar atrás de casa. Meu corpo sentia a água refrescante atravessando as roupas, suavizando a pele. E nesse compasso eu olhava absorta a imensidão do oceano, sem imaginar que o atravessaria em outras vidas para voltar a esta terra brasileira.

Aqui havia abundância de peixes (tainhas, arraias, bagres, mariscos), que asseguravam a proteína diária, e de frutas (banana, laranja, limão, lima, melão). Nas pequenas casas espalhadas pela costa se cultivava mandioca, temperos e outros tubérculos para o sustento da família. Na vila ainda não se encontrava nenhuma tenda de mercador, nem marcenaria, nem boticário.

Aprendi com minha avó índia a usar ervas curativas, e por causa delas pude atender a muitos marinheiros que aportavam na ilha desnutridos, doentes ou agonizantes. Dos que sobreviviam, alguns acabavam por permanecer em terra, seja porque as sequelas os tornavam pouco úteis nos navios, seja por se acostumarem à inércia, à ociosidade local assaz registrada por grandes navegadores que nos visitaram naqueles tempos.

Não tive filhos. Ajudei a criar oito irmãos mais novos, e ao acompanhar minha mãe, durante uma década, no socorro a alguns trabalhos de parto mais difíceis, tornei-me parteira. Nesse ofício percorri, a pé ou de barco, grande parte da ilha e do continente, aonde eu era chamada para tentar salvar uma ou duas vidas em nascimentos complicados, o que ocorria no mais das vezes com mulheres e meninas engravidadas pelos forasteiros. Ocasionalmente acontecia de o rebento vir rompendo as entranhas da mãe, que sangrava até morrer. Num caso extremo, quando cheguei à praia de Canasvieiras já me deparei com a cabeça do bebê solta, pescoço arrebentado de tanto puxarem, e o corpinho dentro da parturiente. Nada mais havia a fazer.

Ajudei a trazer ao mundo até mesmo a filhinha do padre, tão culto quanto irreverente. Foi a ele que, numa tarde chuvosa e benfazeja, fiz meu pedido derradeiro. Que ele escrevesse na cruz de madeira sobre a cova onde eu seria sepultada:

       EM DESTERRO VIVEU UMA MULHER FELIZ  

Século 20. Allegro ma non troppo.                                     

Florianópolis foi o meu porto de passagem na infância e adolescência. Aos dois meses de idade respirei o ar da Capital pela primeira vez. Depois vim a colocar os pés nesta cidade linda, segura e acolhedora a cada ano, quando a família toda (pai, mãe, uma irmã e cinco irmãos) ia passar o Natal e as férias na casa dos avós maternos em Tubarão. Na década de 50, a melhor maneira de lá chegar era pegar o avião da Varig em Joaçaba direto a Florianópolis, onde precisávamos pernoitar ou ficar dois dias – sempre bem recebidos pelos tios Alberto e Walburga – e então ir de ônibus ou carro ao sul do Estado.

Eu tinha cinco anos e meio quando pude observar a cidade mais longamente: foi no dia em que meu irmão três anos mais velho avisou a mamãe que ele ia dar uma voltinha com a Maria Tereza. Saímos da rua Presidente Coutinho, onde nos hospedávamos, e fomos andando, andando, andando... Avistei o mar, subimos um morro enorme, que me fez reclamar de cansaço (mas meu irmão, me puxando pela mão, insistiu na caminhada), descemos; de novo o mar, muitos barcos perto do Mercado Público, as lojinhas, o cheiro gostoso diante da padaria Brasília. “Olha, maninha, estamos perto.” O sol já tinha se posto quando encontramos na Praça XV a banca do Beck (meu tio), que estava inquieto, pois já tinha sabido da “fuga”.  Ele nos mostra o roteiro por onde passar: a excelsa Catedral, o histórico Teatro Álvaro de Carvalho, a graciosa praça do Corpo de Bombeiros. Desce a ruazinha, pega à esquerda, vai reto...  Afinal chegamos, e a bronca foi enorme!

Dois natais mais tarde fui mandada a Florianópolis de avião com um irmão de 12 anos. Os tios foram informados por telegrama que o pouso estava previsto para as onze da manhã. No aeroporto Hercílio Luz tomamos uma Kombi que levava os passageiros ao seu hotel ou residência: trajeto longo, bonito, mas muito demorado. Enquanto passávamos na Costeira do Pirajubaé, fiquei olhando o mar tão próximo, separado da estrada sinuosa e poeirenta apenas por pequenos postes e traves de cimento pintados de branco, como retratou Aldo Beck em aquarela. Já no centro, o veículo fez mil voltas, deixando não as crianças em primeiro lugar, como hoje se faria, mas os adultos – mais importantes. Quando finalmente meu irmão e eu desembarcamos na casa dos tios, era quase uma hora da tarde e não havia mais almoço! “Pensamos que o voo de hoje tinha sido cancelado”, ouvi. Sem problema: gasosa e sanduíche resolveram nossa fome.

No final de 1969 abriu-se a primeira linha de ônibus direta de Joaçaba a Florianópolis, o que me permitia vir cursar uma faculdade aqui em vez de Curitiba. Em janeiro do ano seguinte fiz as 11 provas do Vestibular Único e Unificado da UFSC. Na mesma tarde em que anunciaram no alto-falante do câmpus o meu nome como 1° lugar  na área de Comunicação e Expressão, recebi o trote. Mesmo pintada do cabelo aos pés, passei pelo correio central para mandar um telegrama aos meus pais. Na casa da tia é que fui tomada de chorosa emoção ao ver a água da tinta escorrendo pela banheira. Destino selado: vou voltar, continuar meus estudos de piano, me formar, dar aulas, casar e ter filhos manezinhos, cantar, sonhar, viver para sempre.    

Era assim a Florianópolis dos meus sonhos!

Século 21. Prestissimo.

Tereza, estás a fim de um cineminha hoje? Festival Varilux. Último dia. Filme francês maravilhoso, imperdível. Então tá. Passo na Trindade pra te pegar. Saio de Coqueiros em dez minutos, já fica pronta.” Espera, espera... Onde é que andas, guria? “Teve um acidente com um caminhão do lixo na entrada da Ponte. Tudo travado, só passam as ambulâncias.” Então já vou indo, Amiga. Nos vemos lá. Bah, muito carro parado aqui na Serrinha. Deve ter ônibus subindo. Felizmente vou descer. Pois olha, Amiga, tá difícil por aqui também. Ainda não consegui atravessar o bairro. Sabes como é: final de expediente na universidade, horário de saída das aulas, uma via fechada (obras da prefeitura), outra com parte obstruída (um buracão no asfalto). “Ôpa, começou a andar... Parou de novo. Um motoqueiro no asfalto, triste isso. Estás na estrada, não? Chega e já pede o lanche, sabes o que eu gosto.”  Fila danada na reta das Três Pontes! E de novo na subida do morro. Essas motos com o escapamento aberto me deixam enlouquecida! Mas acho que até às sete dá para vencer o trânsito. Agora vai... Maldita gente que corta o caminho pelo acostamento! Parou de novo, haja paciência! “Tudo bem aí? Me escuta...” Como? Não vens mais? Faltam 15 minutos... Estou ficando ansiosa. Vamos, gente, corre! Dois minutinhos só. Café, croissant, chocolate quente, coxinha – azar, hoje não dá. Cancela do estacionamento aberta, será sorte?

Na bilheteria, o recado: DESCULPEM, ESTAMOS SEM ENERGIA

Floripa frenética. Filme finado. Fim.

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Publicado, sob o título “A Capital em três tempos”, no livro Nas asas do martim-pescador: tributo a Florianópolis - 350 anos, da Academia Catarinense de Letras, Vitelli Publisher, 2023.