Duas mulheres judaico-brasileiras: ANNA LOBÃO e CLARICE LISPECTOR

Publicado em 11/03/2024

Maria Tereza de Queiroz Piacentini

 

            Neste Congresso vou apresentar-lhes a minha bisavó paterna, Anna Lobão, filha de judeus asquenazes nascida em Valença, na Bahia, cidade onde também nasceu o meu pai em 1916, a quem dedicamos um livro em no ano do seu centenário, intitulado Memórias de Alexandre Queiroz: da estirpe baiana à família catarinense[i] e foi dele que destaquei a personagem principal deste relato. Ali descobri como Anna se parecia[ii], mas observei que se ignoram muitos fatos do seu passado, como data e local de nascimento. E mais: quem eram seus pais e avós? De onde vieram? Como chegaram à Bahia?

Em razão das minhas raízes judias (constatadas inclusive em exame de DNA), sempre mantive grande interesse na sua tradição cultural: fui a vários museus judaicos e visitei Israel, país de gente séria e acolhedora, onde também estiveram meus filhos, no Kibbutz Shaar Hamakim, em 1995-96 e no ano 2000.

Então, em 2017, ao ler o livro Clarice, uma biografia[iii], de Benjamin Moser, procurei retraçar na imaginação a trajetória desconhecida desses meus antepassados asquenazitas com base na história de emigração vivida pela família de Clarice Lispector e minuciosamente descrita pelo autor.

 

Aninha, Dona Aninha, Naninha

    Miúda de corpo, de pequena estatura, era natural que Anna recebesse um diminutivo no prenome: Aninha. Depois de adulta passou a ser chamada de Dona Aninha, cuja pronúncia levou à forma reduzida Naninha. E foi por “vó Naninha” que meu pai sempre se referia a ela, tendo me contado sobre a sua aliança com José Muniz de Souza Sobrinho, apelidado de Juca:

“Vô Juca, na juventude, trabalhava como balconista num dos armarinhos da cidade – loja em que se vendem tecidos, aviamentos de costura e outras miudezas –, pertencente a uma família judia que se radicou na Bahia. Foi em meio a panos e texturas, nos olhares trocados pela porta entreaberta, que nasceu o amor entre José e Anna, a filha do dono da loja.”

Imagina-se que o jovem baiano conquistou a confiança de Seu Lobão em vários aspectos, pois mais tarde este passou o armarinho para o nome do genro, falecido no dia 5 de março de 1937.

José Muniz e Anna Lobão casaram-se provavelmente em 1892. Deduzimos essa data porque Ritta, a primeira filha dos sete rebentos do casal, nasceu no dia 17 de maio do ano seguinte, 1893.  

Uma bela fotografia com muitas mulheres tirada em Conceição da Feira - BA em 11/4/1915 refere que Ritta Lobão Muniz de Queiroz foi a Julgadora da “Exposição de Costumes da Casa Singer”. Daí se depreende que, se ela não se constituía em modista, era no mínimo uma costureira conceituada. A dedicatória atrás da foto é singela mas denota gratidão à genitora pelo ofício aprendido: Para mamãe, [da] Rittinha.

Outra coisa que as duas tinham em comum era o medo de trovoada. Quando trovejava, elas se apegavam a uma imagem de Santa Bárbara e trancavam todos num quarto para rezar. Seria só o costume local, ou isso indica que era católica praticante a Anna judia?

No dia 4 de janeiro de 1935, seis anos e meio depois da morte precoce da filha Ritta por febre amarela, falece Anna Lobão Muniz de Souza. Quantos anos teria? Naquele tempo as pessoas se casavam e morriam mais cedo. Admitindo-se que contraiu matrimônio aos 17 anos, ela teria deixado este mundo com 60 anos de idade incompletos.

 

Clarice

            A nossa grande escritora Clarice Lispector dispensa apresentação em relação à sua obra – tão decantada desde sua morte em 1977 – e à sua vida pessoal, copiosamente exposta na mídia neste século 21.

Nascida em 10 de dezembro de 1920, ela tinha pouco mais de um ano de idade quando chegou ao Brasil, portanto sem nenhuma lembrança consciente dos fatídicos acontecimentos no antigo Império Russo que levaram sua família a emigrar. No entanto a irmã mais velha, Elisa, deixou por escrito as suas memórias dessa dura jornada.

A razão de tudo foi uma explosão do antissemitismo na Europa. A família Lispector viveu – desde o casamento de Pinkhas e Mania em 1910 – em pequenas cidades da Ucrânia, onde o pai prosperou como lojista, “vendendo sapatos, tecidos, chapéus e acessórios”. Em 1919, no distrito de Haysyn, onde estavam morando com as duas filhas, aconteceram 29 pogroms[iv], dos mais brutais de que se tem notícia.

O resultado para os Lispector de um desses ataques insanos foi ter sua casa arruinada, inabitável; foi a fome, o pavor e o medo; o estupro e a sífilis da mãe Mania. A família então decidiu fugir, para tentar a sorte em outro lugar. Foram inicialmente para Tchetchelnik, cidade onde tinham parentes. Lá nasceu a terceira filha, Chaya (“vida”, em hebraico), depois chamada Clarice.

E dali em diante foi um sequência de mudanças e percalços: falta de trabalho, tristeza, exaustão e preocupações, Moldávia, Romênia, albergues de refugiados, obtenção de “carta de chamada” para poder entrar no Brasil, aonde chegaram de navio, viajando em terceira classe, no ano de  1922.

 

Paralelos

Se os pogroms levaram a família Lispector a fugir do seu torrão natal, cheguei a supor que o mesmo poderia ter acontecido com os Lobão em consequência do grande pogrom acontecido no sul da Rússia de 1881 a 1884, que levou a uma emigração massiva de judeus para os Estados Unidos, bem como para outros países das Américas em menor número. Todavia a hipótese não procede, porque Aninha nasceu na Bahia antes disso, por volta de 1875. Sendo assim, calculo que os imigrantes foram seus avós paternos, cujo filho, de sobrenome Lobão, pode ter se casado com uma descendente de judeus asquenazes ou até mesmo uma brasileira da gema. Como terá sido sua travessia? Sua recepção no Nordeste desta imensa nação?

Penso então na passagem turbulenta e resignada dos familiares de Clarice Lispector à terra não prometida: havia amor, havia o aconchego da recém-nascida. Mas onde estaria o sorriso espontâneo das crianças? Será que houve um instante para apreciar a lua e o pio da coruja, o voo da cegonha, os campos de trigo da cor de ouro, os girassóis se abrindo?

Da alquimia de sofrimento e esperança surgiu Clarice, mulher sensível, corajosa, inteligente – uma estrela no firmamento da Literatura!

Quanto aos meus ascendentes, tenho o sentimento de que encontraram mais flores no seu caminho.

Da união de judeus e brasileiros despontou Anna Lobão, mulher sensível, prática, bondosa, a segunda mãe de cinco netos órfãos – uma estrela no Céu!

 

 

 


[i] Dulce de Queiroz Piacentini e Olga Maria Krieger (Orgs.), Memórias de Alexandre Queiroz: da estirpe baiana à família catarinense. Curitiba: Bonijuris, 2016. 

[ii] A única foto que restou dela nos foi cedida por uma filha do meu tio Manoel Lobão.

[iii] Benjamin Moser, Clarice, uma biografia. Trad. José Geraldo Couto. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.

[iv] A palavra pogrom vem do russo e significa “devastação, motim, destruição”, referindo-se aos movimentos populares antijudaicos, ou contra uma minoria, acompanhados de violência, pilhagens, agressões e assassinatos, os quais passavam impunes, já que as autoridades do governo faziam vista grossa a tais crimes.

 

Apresentação feita no II Congresso Internacional Judaísmo e Interculturalidades ­ culturas e identidades, realizado em Penamacor, Portugal, nov. 2023.