Não Tropece na Língua

Número: 108
Data: 20/11/2019
Título: ALCORÃO = CORÃO, EM UM = NUM

ALCORÃO OU CORÃO


O nome do livro sagrado dos muçulmanos em árabe é “al-kuran”, em que “al” é artigo definido. É por isso que também se pode escrever, em português, Corão, separando-se o artigo do substantivo. A grafia mais comum, porém, é Alcorão – embora pareça redundante dizer o Alcorão – porque é assim que se comportam as palavras de origem árabe que se incorporam à língua portuguesa: o artigo AL se aglutina à palavra-base na passagem para o português. O falante não percebe ou não sabe disso quando diz: a alface, a alfândega, a almofada, a almôndega, o algodão, a aldeia, a alcova, a alcachofra, o alfinete, o algarismo, o alvará, o almoxarife – só para dar alguns exemplos em que o artigo em português é concomitante ao artigo árabe.


EM UM OU NUM


Não há nada na gramática e tampouco nas obras de literatura contra o uso da contração da prep. EM com os artigos indefinidos [um, uns, uma, umas]. A aproximação dos dois elementos conduz naturalmente, pela ressonância nasal, à contração: num, numa, nuns, numa. Tanto é que se fala assim.


Deixo por conta de Evanildo Bechara a síntese do caso: “Sabemos desde os primeiros bancos escolares que, quando se encontra na cadeia da frase a preposição de com o artigo definido ou pronome iniciado por vogal, se dá a contração: O livro de o menino / O livro do menino. A casa de ele / A casa dele. Já com os artigos indefinidos e certos pronomes iniciados por vogal esta contração é facultativa: O livro de um menino / O livro dum menino. É revista de outros tempos / É revista doutros tempos” (Na Ponta da Língua, v.2, RJ: Lucerna, 2002, p.177).


A observação a fazer é que no Brasil o uso de dum é menos frequente do que em Portugal. Recebi mensagem de um lusitano assim: “Votos dum feliz Natal”. Também na Revista Luso-Brasileira de Florianópolis: “A Marcha dum Povo”. Entretanto, NUM é tão usual aqui quanto lá. Existem algumas situações em que a eufonia exige mesmo a contração, por exemplo quando a palavra anterior traz a terminação “em”: Creem em um só Deus [em em]. Melhor: Creem num só Deus.


O único caso em que se recomenda (mas não se obriga, cf. Machado de Assis, abaixo) usar em um é quando se trata do numeral. Exemplo: Ele estará de volta em um ou dois dias.


Fui procurar este emprego no grande escritor brasileiro Machado de Assis. Em duas páginas seguidas de “Memórias póstumas de Brás Cubas” (Abril Cultural, 1978, p. 22 e 23) já deparei com três ocorrências:
          1. “Como tocássemos, casualmente, nuns amores ilegítimos, meio secretos, meio divulgados, vi-a falar com desdém.”

          2. “Com efeito, abri os olhos e vi que o meu animal galopava numa planície branca de neve.” 

          3. “Logo depois, senti-me transformado na Suma Teológica de Santo Tomás, impressa num volume, e encadernada em marroquim, com fechos de prata e estampas.”


Anote: embora se tratasse de um volume, o autor usou a contração.


Então, não é questão de bom ou mau uso, certamente. Apenas de estilo e gosto; gosto pela redação mais fluente que as contrações das preposições com os artigos sem dúvida propiciam.