Não Tropece na Língua

Número: 200
Data: 25/08/2021
Título: O PERU DE NATAL E OUTRAS MUDANÇAS

 “Antevéspera de Natal. Estava na hora de comprar um peru para a ceia. À porta da venda, o anúncio em letras garrafais:

 

     OFERTA
*Perú que apita
 
 
“Pessoa exigente com a língua nacional, Seu Natalino achou o peru com acento uma afronta. Sem falar do engodo do apito: o peru temperado informa o cozimento por um termômetro que salta, mas não apita coisíssima nenhuma.
 
“E aquele acento agudo, para quê? Sem ele a pronúncia seria diferente? Obviamente não. O natural em português é pronunciar mais forte a sílaba final em u. O reino animal nos dá vários exemplos: tatu, urubu, anu, nambu, jacu, uru. O acréscimo de um s não faz diferença: tatus, perus, urubus, chuchus, cajus, nus, crus, etc.”
 
Esse foi o início de uma crônica minha publicada em 1988 e que me ocorreu reproduzir agora em dezembro para mostrar que, assim como mudam os costumes – hoje já existe o chester, entre outros tipos de carne consumidos no Natal –, muda também o idioma, que vai produzindo novas palavras e estruturas ou alterando as já existentes em termos de pronúncia, de significado e mesmo de ortografia.
 
Nesse último caso podemos mencionar algumas palavras compostas com verbos alteradas pelo Acordo Ortográfico (2009). Em relação ao acento agudo em “para”, que caiu, temos: para-brisa, para-choque, para-chuva, para-lama, para-raios, para-sol. Todas com hífen, à exceção de paraquedas (e sua derivada paraquedismo), sob o argumento que não se usa o hífen em palavras compostas que, de alguma forma, perderam a noção de composição. Não se teria perdido também essa noção (de que a origem é o verbo parar com o sentido de aparar, proteger) nas palavras anteriores?  
 
Veja-se ainda que o figurão ou líder passou a ser designado por substantivo sem hífen: mandachuva, quando antes o hífen era facultativo: também se podia escrever manda-chuva. 
 
Por isso é discutível a manutenção do hífen em vaga-lume e pica-pau, que extraoficialmente se escrevia picapau (O sítio do picapau amarelo); e vagalume  já teve registro oficial, como variante, no Pequeno Vocabulário da Língua Portuguesa de 1999. Creio tratar-se do mesmo fenômeno de perda da noção de verbo do primeiro elemento que se vê em mandachuva e girassol. A incoerência se evidencia na grafia das palavras vagalumear, vagamundear e vagamundo. Por que não vaga-mundo?  Ou, melhor, por que não vagalume?
 
Toda língua muda com o tempo. Se tentarmos ler a carta de Pero Vaz de Caminha provavelmente vamos ter dificuldade em entender o texto. Mesmo os escritores de língua portuguesa do século 19, como José de Alencar, Machado de Assis e Eça de Queirós, causam certa estranheza para as novas gerações. Ainda que edições atuais tragam a ortografia vigente – e não “pae e mãi” [pai e mãe], por exemplo –, os jovens às vezes não curtem essas obras clássicas por não entenderem muitas palavras ou não harmonizarem seu gosto moderno e solto a uma sintaxe mais formal e tensa.
 
Com controvérsias ou não, nossas discussões linguísticas continuam na próxima semana. Desejamos a todos um feliz Natal.