Não Tropece na Língua

Número: 263
Data: 07/12/2016
Título: NORMA CULTA, PURISMO E ESTRANGEIRISMOS

 Como vimos e tem se propalado, o mau uso da língua afeta as inúmeras situações sociais, mas deve-se considerar que na verdade as situações sociais é que determinam os usos linguísticos. Os falantes se constituem como tal, usuários de uma determinada variedade linguística, nas interações verbais de que participam – já mostrava Bakhtin.  Se uma criança nasce num meio letrado, a gramática da língua que ela irá internalizar certamente será aquela que mais se aproxima dos padrões de prestígio social. 

 

Em nossa sociedade temos, de um lado, acumulação de poder material e simbólico; de outro, uma classe desmobilizada e sujeita aos instrumentos de imposição e dominação cultural, portanto linguística. Assim, “por maior que seja a parcela de funcionamento da língua infensa à variação, existe, tanto no plano da pronúncia como no do léxico e mesmo da gramática, todo um conjunto de diferenças significativamente associado a diferenças sociais”, observou Bourdieu (1996).
 
 
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Como a língua não é um sistema pronto, acabado, mas está sempre sendo recriada, há forças permanentemente em movimento: forças internas agindo sobre ela (fatores gramaticais) e externas que nela atuam (os fatores sociais, como o contato com outras línguas, por exemplo), abrigando o surgimento de inovações a todo o momento. Essas inovações convivem por um tempo com as formas vigentes, enraizando-se depois e podendo elas próprias ser ultrapassadas com o correr dos anos. 
 
Purismo significa desconhecer tais mudanças e aceitar apenas uma língua pura, ornamental e escoimada de “erros”. Purista, portanto, é aquele que não se deixa impressionar “pelo caráter social de um discurso, não aceita as variantes combinatórias da norma objetiva, recusa dobrar-se à pressão estatística do uso”, diz Alain Rey (in Bagno. Norma lingüística, 2001). Parece, assim, que o purista ignora ou faz questão de ignorar todo o conhecimento científico da língua, recusando a realidade do uso. Um exemplo disso seria a insistência no ensino de certas formas anacrônicas, algumas jamais utilizadas no Brasil, como “anos oitentas, noventas” etc.
 
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Uma das consequências de uma visão purista da língua são os ataques aos estrangeirismos que aterrizaram no Brasil, especialmente depois que a informática aqui se instalou com força, trazendo consigo não só a tecnologia americana mas a língua inglesa, intocada em termos como hardware, software, backup, zip, hacker, e-mail, link, e adaptada em outros como deletar, printar e atachar.
 
A crítica ecoa alarmista só porque as pessoas não se dão conta do fenômeno da variabilidade linguística. O uso de palavras provenientes de outras línguas é – repetindo – uma questão de aceitabilidade, de disposição às mudanças, na compreensão de que a variação está inscrita na língua, é inerente a ela. A mudança pode ser lenta, mas é inexorável.
 
E não podemos deixar de lembrar que a importação estrangeira é uma das fontes de formação lexical. A língua de aquisição é que varia, dependendo da época. Nos séculos 18 e 19, por exemplo, o francês era predominante. Agora é o inglês.  Quem é preconceituoso contra os empréstimos linguísticos imagina que atualmente eles são mais abundantes ou poderosos do que no passado, a sugerir a decadência da língua, o que não é verdade, conforme a ciência linguística constata.  
 
Essa noção de declínio, aliás, não é peculiar à língua portuguesa. Também em outros países a questão de uma norma aparentemente imutável e isenta de estrangeirismos está muito ligada à ideia de corrupção e empobrecimento linguístico. As pessoas veem a quebra das normas, ou o relaxamento de certos cânones linguísticos, como uma ameaça à integridade ou sobrevivência da língua. Não só os estrangeirismos mas toda contravenção linguística parece atentar, no imaginário dos brasileiros, contra a unidade e a força do nosso português. 
 
Por tudo isso vale ressaltar a importância da tolerância e da aceitação da pluralidade, sem preconceitos. Devemos nos abrir a novos horizontes, voltados, como bem sublinha a educadora Magda Soares, a “uma nova concepção de língua: uma concepção que vê a língua como enunciação, não apenas como comunicação, e que, portanto, inclui as relações da língua com aqueles que a utilizam, com o contexto em que é utilizada, com as condições sociais e históricas de sua utilização” (in Bagno. Lingüística da norma, 2002).