Não Tropece na Língua

Número: 261
Data: 23/11/2016
Título: NORMA CULTA E CAPITAL LINGUÍSTICO – IV

 Vimos anteriormente que não somos uma nação monolíngue, que não há uma unidade linguística imutável mas sim variações de uso. Podemos afirmar também que existe uma consciência da aceitação social ou não de certos usos linguísticos. 

 

À variedade de língua que goza de prestígio social chamamos de norma culta. Para o sociólogo francês Pierre Bourdieu (1930-2002), trata-se da “língua legítima”. Em sua teoria, o adjetivo legítimo não é tomado na acepção de “puro, genuíno, vernáculo, autêntico”, mas sim no sentido de “amparado por lei”, que tem força de lei por ter o reconhecimento da comunidade, ou “mercado linguístico”, como se refere.
 
Uma vez que os indivíduos desejam ser reconhecidos socialmente, cabe à escola propiciar-lhes os meios para tanto. E cabe ao professor destacar o valor social que é atribuído aos usos linguísticos. Por exemplo, “para mim fazer sofre preconceito, é considerado erro, é estigmatizado... A construção para eu fazer goza de prestígio, abre portas...”, reconhece Marcos Bagno.
 
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Conforme Bourdieu (A economia das trocas lingüísticas: o que falar quer dizer. SP: Edusp, 1996), toda situação linguística funciona como um mercado no qual o produtor-falante, provido de um dado capital linguístico, coloca seus produtos, os quais vão proporcionar um lucro material ou simbólico de acordo com o preço que lhes for conferido. Ou seja, aprendemos a falar ao mesmo tempo aprendendo a avaliar por antecipação qual o preço que nossa fala receberá – já temos uma ideia das recompensas ou das sanções relacionadas ao tipo de linguagem que empregamos. Daí a nossa preocupação em “dizer bem”, em “falar direito”, em “produzir produtos ajustados às exigências de um determinado mercado” (idem, p. 66).
 
O mercado linguístico é “dominado pela língua oficial, obrigatória em ocasiões e espaços oficiais”, continua Bourdieu. Para isso a língua se torna um produto normatizado, a começar pela padronização da ortografia, aliás único aspecto instituído por lei no Brasil. Os demais são aspectos normatizados nas gramáticas, nos livros escolares, nos dicionários, que se impõem por serem reconhecidos como legítimos – “e não apenas pelos dominantes”, ele frisa. Os gramáticos constroem a língua legítima ao selecionarem os “produtos” que lhes parecem “dignos de serem consagrados e incorporados à competência legítima por meio da inculcação escolar”. A escola reforçará que não é “legítimo” o uso do singular pelo plural como em “dois café, dez real”, pronúncias como “poblema, rúbrica”, ou (más) construções como “nós se entendemos, ela tinha chego, a gente vamos”.
 
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Quanto mais oficial é a situação, portanto, maior é o peso do uso da língua legítima. Nas posições mais elevadas da hierarquia social amplia-se o grau de vigilância, de censura alheia e autocensura, de formulação – no sentido de dar (boa) forma ao discurso. Nessa classe observam-se tais cuidados, aliás, não só na maneira de falar, mas também na de vestir, comer, comportar-se. 
 
São as sanções (escolares ou familiares), os desmentidos, os reforços positivos ou negativos que vão constituindo em nós a percepção social dos usos linguísticos e da relação entre os diferentes usos e os diferentes mercados. O falante vai adquirindo ao longo da vida a sensibilidade e a capacidade de fazer frente à tensão social usando a linguagem adequada a cada circunstância.
 
A possibilidade de estar exposto a uma avaliação social justifica a “censura antecipada” e a busca de orientação sobre o que deve ou não deve ser dito; justifica a preocupação com a melhor forma a ser utilizada nas interações sociais, pois o desvio pode acarretar sanções, críticas ou mesmo chacotas. Não se expressar de acordo com a etiqueta linguística, então, por ser produto depreciado no mercado ou espaço social, enseja uma imagem negativa do cidadão, leva a uma série de preconceitos, que discutiremos no próximo artigo.